quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Anatomia dos Mártires


Título: Anatomia dos Mártires
Autor: João Tordo
Editora: D.Quixote
272 páginas, capa mole

Classificação: ***** (5/5)

Não tenho por hábito ler muitos autores portugueses contemporâneos, João Tordo prova que provavelmente o devia fazer mais vezes. 
Esta é uma história narrada por um jornalista português jovem, um tanto solitário e pouco reconhecido pelo seu irascível editor.  Depois de o acompanhar  numa estranha viagem à terra de Catarina Eufémia é destacado para entrevistar o biógrafo de um suicida/mártir religioso cujo livro nem sequer leu. O artigo que escreve revela ter consequências inesperadas, tendo misturado a história do homem que saltou de um prédio com um manuscrito ao peito, Catarina Eufémia, a camponesa que se tornou um dos símbolos do partido comunista ao ser assassinada pela GNR durante a ditadura, e alguns outros mártires, gera reacções bastante aguerridas e ameaçadoras. Parece até que o jornalista tocou  em assuntos proibidos. Surpreendentemente o seu editor, comunista ferrenho, defende o artigo e certa noite é espancado e encontrado em coma na rua.
O jornalista pergunta-se se a culpa não será sua, tendo escrito o artigo de ânimo leve e sem grande pesquisa, embrenha-se numa investigação obsessiva da vida de Catarina Eufémia. À medida que fica absorvido pelo verdadeiro significado do martírio de Catarina Eufémia e a usurpação de uma identidade própria a sua vida pessoal vai sofrendo com esta obsessão. 
Conturbadas relações amorosas, um pai mentalmente instável com a morte da sua companheira de toda a vida e o início de uma crise económica são realidades que se cruzam com a ficção e com a história que o absorve. No final do livro o jornalista afirma querer escrever um romance:
"(...) é um romance sobre Catarina, mas mais do que isso, é um romance sobre as nossas vidas, nós que, tal como ela, fomos apoderados pelo tempo e pelo dinheiro e pelo amor e pela própria morte, nós que sem o sabermos também temos razão e também iremos fracassar, nós que carregamos as bandeiras de todos os partidos e de todas as religiões e de todas e ideologias e de cada recanto de cada província de cada país; nós que á nossa maneira tosca e provinciana, decidimos desafiar a realidade na nossa frieza, na sua indiferença e na sua crueldade e caímos num rol de equívocos cujos fios invisíveis e emaranhados só conseguiremos destrinçar quando alguém escrever a nossa história: é essa a minha missão, digo-lhe."
De certa forma define a realidade que vive e a sua narrativa, ele que também foi apoderado por uma obsessão e pelas circunstâncias reais.
Esta não foi uma leitura que fiz de uma assentada, compulsivamente, é um livro um pouco mais exigente e que exige um pouco de reflexão e tempo. Gostei muito da escrita do autor, das suas descrições e reflexões sobre momentos quotidianos, sobre relações, perdas e sobre a realidade e a influência de história no tempo presente e na identidade de um povo. O tema do martírio, da futilidade ou não de um sacrifício para defender uma ideologia e da verdadeira identidade de um mártir, que ao fim ao cabo se torna mais um símbolo que de uma pessoa real, que absorve o narrador e dá título ao livro é muito diferente de qualquer um que já tenha visto ser abordado. 
Fiquei deveras impressionada com a escrita deste autor neste livro, já tinha lido e apreciado "O Bom Inverno" mas esta história cativou-me muito mais talvez por ter conseguido relacionar-me com o personagem principal e pela história se passar em Portugal no tempo presente. Seguramente irei ler outros títulos de João Tordo e recomendo esta obra a quem quer que procure um bom livro. 




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